— Mãe! — Sophia gritou — Manhê!
Ela vinha correndo pelas escadas. Os
cachinhos loiros voavam para trás na sua pequena pressa.
Atravessou a sala, passou correndo
pelas portas de vidro e saiu pelo jardim. Os pezinhos pequenos, descalços e
sujos.
— O que aconteceu, minha filha? —
Clara, assustada quase pulou da cadeira em que repousava para ler um livro.
Inspecionou com os olhos a pequena
menina, segurou-a nos braços e a virou.
Sophia estava imunda. Com camadas
grossas de pó por todo o cabelo e roupas, havia até umas manchas marrons pelo
rosto da pequena.
— Lê pra mim? — Sophia pediu
esticando uma pequena pilha de envelopes amarrados por um barbante fino.
— O que é isso? — Clara
perguntou curiosa mais para si mesma, do que para Sophia.
Os envelopes estavam amarelados pelo
passar de tantos anos. Rasgados cuidadosamente nas laterais. Alguns papeis
saiam de dentro dos envelopes. Por cima, eles estavam remetidos a
"Bernardo".
— Onde encontrou isso? — Clara
perguntou.
— No quarto escuro! — Sophia estava
tão ansiosa para saber o que havia escrito naqueles papeis que não esperou a
mãe falar e já lhe foi tomando os envelopes de volta para si.
— Por que você estava no porão? — Um
pequeno olhar de repreensão saltou de Clara.
— Eu estava explorando mãe!
Tinha um monte de caixas de papelão cheias de coisas. Tinha um monte de
livros, um monte de bichinhos mortos, muito pó. Olha só meus dedos mãe! — Sophia
ergueu a mão com os dedos totalmente sujos.
— Hum... — Foi só o que saiu de
Clara.
— Mãe, por que tem tantas coisas lá
em cima? Você e o pai esqueceram as coisas lá?
Clara sorriu. Não podia se conter em
achar graça na curiosidade da filha.
— Não, Sophia. Aquelas coisas
perderam sua utilidade, então nós os guardamos lá.
— Pra quê mãe? Não era melhor jogar
tudo fora ou dar para alguém?
— Talvez. Eu ainda acredito que deve
haver alguma coisa lá que sirva para algo.
— Mãe! As coisas estão esquecidas lá!
Como você vai saber que precisa de uma coisa se você esqueceu lá? — Sophia deu
um tapinha na testa para afirmar a tolice da mãe, o que ocasionou em mais uma
machinha para o rosto sujo.
— Que tal você tomar um banho,
querida? Você está coberta de pó! — Clara salivou o polegar e esfregou na testa
da menina.
— Você não vai ler pra mim? — Ela
baixou o olhar para os envelopes em suas mãos, depois ergueu o olhar novamente
transformando-o suplicante.
Mães nunca resistem a esse olhar.
— Certo! - Clara revirou os olhos.
Pegou os envelopes das mãos de
Sophia, sentou-se na cadeira de repouso e abriu o primeiro envelope. Com um
sopro forte Clara conseguiu fazer voar algumas centelhas do pó, mas não foi o
suficiente. Seus dedos ficaram grossos pela poeira. Sem resistência, ela buscou
uma flanela para passar por entre os envelopes e tentar tirar um pouco de toda
aquela sujeira.
Antes de iniciar a leitura anunciou
alto — É uma carta!
Sophia enlargueceu o sorriso. Então
sentou-se em frente a mãe.
— "Bernardo". - Clara leu
em voz alta.
— Bernardo... — Sophia repetiu,
saboreando o nome na boca. — Bernardo é o vovô, não é mãe?
— Me parece que sim, querida. — Clara
sorriu.
Clara o desdobrou e passou os olhos
rápidos pela carta endereçada a seu pai. Caligrafia caprichada.
Coisa de mulher. Pensou.
— Mãe! — Sophia chamou.
— Sim? — Clara desviou os olhos da
carta para a filha.
— Estou esperando. — Sophia apontou
para a carta, impaciente.
— Ah sim! Desculpe querida... —
Limpou a garganta e deu início a leitura.
“Bê,
Fiz a mala hoje, e foi com pesar que
me lembrei em cada muda de roupa que coloquei na bagagem que você não poderia
estar comigo.
Tudo bem, eu entendo.
Estou com certa expectativa. Nosso
grupo de viajantes está se comunicando faz algum tempo. Sabemos que será
razoavelmente difícil fazer o percurso todo em 60 dias, mas queremos aproveitar
cada segundo que tivermos e alcançar o máximo que pudermos todos os dias.
Daremos partida na Av. Paulista - SP
como eu te disse, iremos pelo litoral até a Bahia, depois voltaremos pelo
centro do país passando por Minas Gerais e desceremos até o Sul. Nossa última
parada será em Gramado.
Vai ser incrivelmente cansativo, mas
você sabe, não é? Sempre amei esse tipo de aventura. As bicicletas estão
preparadas e teremos alguns acompanhantes que irão de carro para eventuais
problemas.
Nossa primeira parada será no Rio de
Janeiro, para um descanso de um dia. Sei que haverá pessoas que vão desistir na
pausa, aliás, sei que haverá pessoas que irão desistir ainda hoje, mas isso não
me abala, ainda temos um grupo forte que vai dar o sangue para terminar essa
viagem, e eu estarei entre eles! (Eu ouvi um amém?)
Te escreverei em cada parada
detalhando tudo!
Com amor, carinho e saudade (muita
saudade!),
Sara”
— Mãe, quem é Sara? — Sophia
perguntou com os olhos espremidos.
Clara olhou mais uma vez para a
carta, depois para os envelopes unidos notando a mesma caligrafia.
— Ótima pergunta. — Clara disse.
— A vovó tem outro nome, mãe?
Clara não respondeu, ao invés disso,
tirou outro envelope da pilha. Preparou-se para abrir, então Sophia com suas
pequenas mãos a impediu. Clara a encarou sem saber exatamente o porquê.
— O que houve? — Clara perguntou. —
Não quer saber o que mais temos aqui?
— Quero... mãe, podemos ir à casa do
vovô antes de ler a próxima carta?
— Acho que sim. Posso dar uma
espiadinha antes de irmos?
— Não, né mãe?!
— O que quer fazer na casa do vovô?
— Mãe! Para de fingir que é boba!
Quero saber quem é a Sara!
Clara a olhou e sentiu orgulho
daquilo. Sorriu. Depois pegou a pilha de envelopes unidos, colocou a que leram
por cima, e levou as cartas para a sala.
— Você precisa de um banho! Vou ligar
para o seu avô e avisar que estamos indo, está bem?
— Sim! - Exclamou Sophia. Tinha em si
uma mistura de felicidade e curiosidade.
— Tente não emporcalhar o resto da
casa! - Clara gritou assim que se lembrou de como a filha estava suja.
***
— Pai?
— Diga "Alô?" — Soou
uma rouquidão na linha.
— Alô! — Clara disse.
— Quem fala? — Bernardo perguntou
segurando um risinho.
— Pai! — Clara revirou os olhos.
— Que pai? — Ele perguntou.
— Deus do céu! Pai, pare!
— Não posso nem me divertir mais na
linha telefônica. — Ele resmungou baixinho. Depois limpou a garganta e sua voz
soou muito mais forte. — Como vão as coisas por aí?
— Bem. Estou avisando que estamos
indo para sua casa agora.
— Não estou em casa.
— Pai, eu liguei no seu telefone
fixo. É óbvio que você está em casa.
— Droga! Não consigo nem mentir mais!
— Ele riu gostosamente, e Clara o acompanhou na gargalhada.
— Podemos ir? — Ela perguntou
fingindo ter se ofendido.
— Claro, mas traga mel para garantir
sua entrada!
— Eu te amo, pai.
***
Clara dirigiu até o outro lado da
cidade. O pai sempre deu preferência por morar em apartamentos. Segundo
Bernardo, eles eram compactos, cheios de vizinhos desnecessários, mas que
sempre ficam felizes de serem chamados para assistir o último capítulo da
novela e tomar um chá.
Bernardo é um desses velhinhos corpulento,
meio corcunda, quase careca. Segundo ele, seus últimos fios de cabelo são a lá
moda "Cebolinha" *
Tem um sorriso inteiro, diria que é
quase bonito, se não fosse óbvio que naquela altura usava dentadura.
Em dias de frio ele convoca as
vizinhas mais assanhadas do prédio para assistir novela e se delicia com os
gracejos femininos.
O apartamento é pequeno, só com o
necessário para um solitário. Bernardo tem um peixe dourado.
— Prefiro um cachorro. — Ele dizia,
então Clara explicou que um peixe era um animal de estimação mais adequado para
quem mora no apartamento. Reclamando ele disse em resposta. — Veja filha, se eu
tivesse um cachorro, mais moças passariam por aqui e fariam gracinhas a ele,
então nós conversaríamos e talvez eu tivesse um pouco mais de convívio social.
Mas você me deu um peixe. Como vou passear com um diabo desses?
A conversa foi encerrada ali mesmo.
Clara colou um adesivo de cachorro no aquário em provocação, e o velho fingiu
não ter notado, até que finalmente ela foi embora e ele pode amassar o adesivo
sem constrangimento.
Dias depois desse episódio Bernardo
comprou um cachorro. Trouxe para casa um desses cachorros pequenininhos, de
focinho empinado e mirradinho. Um pinscher. Caberia numa bolsa se
quisesse. Em uma bolsa de moedas para ser mais exato. No dia seguinte da compra
Bernardo recebeu uma multa do condomínio por excesso de barulho.
O diabo do cão latia desde o momento
que chegou, até o momento em que foi embora. No único segundo em que ele havia
se silenciado ele estava urinando no travesseiro de Bernardo.
Ele nunca contou a Clara sobre o
cachorro e se sentiu muito feliz por ter um peixe que não lhe acarretava em
nenhuma multa.
Quando Clara chegou o porteiro a
reconheceu.
— Boa tarde, Dona Clara!
— Boa tarde, Maurício! — Ela
devolveu.
Sophia apenas deu um aceno de mão
entusiasmado.
Elas andaram rápido pelo saguão até o
elevador.
Sophia batia o pequeno pezinho impaciente.
Levou menos de 1 minutos para chegarem ao
apartamento 28.
Antes de baterem na porta, o avô
Bernardo abrira recebendo-as com um enorme sorriso. Suas sobrancelhas brancas faziam
Sophia se lembrar do Papai Noel.
— Minha filha e neta preferidas! —
Ele disse abraçando-as.
— Pai, eu sou sua única filha, e
Sophia sua única neta. — Clara disse enquanto entrava. Colocou a bolsa no sofá
e esperou que ele se sentasse também, mas ele não o fez.
— Veja bem, — Ele disse com o
indicador levantado — se houvesse outra filha, você ainda assim seria minha
preferida! — Então ele fez uma pausa, levou o dedo aos lábios. — Pensando bem,
acho que sua irmã seria mais legal do que você, então... ah, vamos deixar isso
pra lá. Não quero ficar me frustrando, pensando na oportunidade que perdi de
ter uma filha legal.
Eles riram.
Bernardo estava entre as pessoas que
estão sempre caçoando de você, e quando digo sempre, é sempre mesmo. Mas não é algo que ele faça
por maldade, é só porque é o jeito que ele resolveu levar a vida. Sua relação é
bem aberta com qualquer pessoa e seu taradismo chega a ser engraçado.
— Trouxe mel? — Um brilho atravessou
os olhos de Bernardo.
— Sinto muito — Clara disse. Então
revirou a bolsa. — Serve o puro?
Bernardo sorriu. Pegou o pote de mel
e levou para a cozinha. Depois voltou e fez sinal para que elas o acompanhasse.
Pegou torradas e passou mel nelas,
exatamente do jeito que ele gosta. Ofereceu a Sophia, mas ela recusou como
sempre fazia. Mel deixava os dedos pegajosos. Ainda era uma criança que se
sujava ao comer.
— Pai, encontrei algumas cartas no porão
hoje. — Clara disse.
Sophia ao ouvir deu um cutucão em sua
mãe.
— Encontramos. — Clara corrigiu.
Outro cutucão.
— Certo! Sophia encontrou! — Ela
disse. — Nós lemos uma dessas cartas.
Outro cutucão.
— Deus do céu! — Clara exclamou. —
Quer parar com isso?
— Vô, foi ela quem leu, tá?!
Ele fez que sim com a cabeça e
sorriu. Passou mel em outra torrada e mordeu devagar. Depois meneou a cabeça.
— Prossiga.
— Quem é Sara, pai?
Bernardo parou de se mover por alguns
segundos. Os olhos se perderam num abismo. A feição mudou. Parecia ter se
lembrado de algo que aconteceu há muito, muito tempo atrás.
Voltou a morder a torrada.
O silêncio tomava a cozinha por
completo, exceto pelo mastigar de Bernardo.
— Longa história. — Ele respondeu
depois de algum tempo.
— Quer as cartas de volta? - Clara
perguntou. Depois se arrependeu de perguntar. Ainda estava curiosa para saber o
que havia nas outras cartas. Talvez as ler a faria descobrir quem era Sara. Se
ela veio antes ou depois de sua mãe. Se era alguma amante. Qualquer pista.
Bernardo sorriu, mas não disse nada.
Clara baixou os olhos para a toalha
de mesa. Havia desenhos de frutas.
Sempre achei engraçado que na medida
em que as pessoas envelhecem e tomam o caminho de suas vidas, elas trocam a
toalha de mesa branca pelas estampadas. Não que isso seja unanime.
Sophia saiu correndo da cozinha e foi
para a sala. Apesar de ser pequena, ela sabe muito bem quando o clima está
“pesado” . Ligou a TV e ficou assistindo um desenho. Qualquer coisa era melhor
do que o silêncio que havia ficado naquela cozinha.
Quando Bernardo terminou de comer
suas torradas com mel, ele tocou a mão de Clara e como se respondesse a dúvida
que a atormentava, ele disse:
— Eu ainda não conhecia sua mãe.
Clara suspirou aliviada.
Ele reclinou-se na cadeira e deu um
suspiro. Os olhos estavam marejados. A emoção o tomou como uma onda. Era
notável que ele havia retornado em sua memória e capturado todas as lembranças
as quais esse nome se sustentava.
— Depois de 67 anos eu ainda me
lembro de como me senti quando a vi pela primeira vez...
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Gente, comecei a usar o Wattpad recentemente para postar capítulos do livro que estou escrevendo, entretanto, verifiquei que o link para acesso ao capítulo disponibiliza apenas metade do texto, o que significa que o leitor precisaria fazer sua inscrição no site. Acho isso muito chato, por isso resolvi postar aqui também.
No caso de alguém ter Wattpad e quiser ver por lá ( que é onde o capítulo sai primeiro), o meu perfil está aqui